“O Senhor te porá por cabeça e não por cauda...” (Dt 28.13), “você nasceu para ser vencedor....”, “você dominará sobre outros....”, são frases cuidadosamente pinçadas da bíblia pelos pregadores da felicidade para apresentar uma forma de vida vitoriosa e sem percalços aos seus ouvintes. A razão disso? Em nosso meio de fé há uma grande dificuldade em lidar com qualquer coisa que se assemelhe a decepção, tragédia, dor, tristeza, ou separação. Então, se constrói toda uma teologia de como evitar que coisas desagradáveis nos aconteçam.
Testemunhos contando vitórias, ganhos e novas aquisições são comuns e apontam ao inconsciente coletivo que há algo errado quando isso não é uma realidade também em sua vida. No seio de uma igreja ninguém mais pode estar triste, choroso, pensativo ou melancólico, pois vivemos numa cultura cristã-hedonista, onde ter fé em Deus é a senha para buscar o prazer o tempo todo, como se tal fosse possível ou mesmo saudável para a alma. Diante desta geração de novos crentes, sinto-me como o poeta Álvaro de Campos em seu “Poema em Linha Reta ”:
(...)
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
(...)Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Vendeu-se a idéia de que crente tem de “funcionar” bem em tudo, ser belo, saudável, contas em dia, qualidade total, como um produto exposto na prateleira. Enquanto o mundo procura fórmulas para suprimir a tristeza e aniquilar o vazio em livros de auto-ajuda, no meio cristão surgiu uma coqueluche para participar de “Encontros” que pretendem ser a panacéia universal para os problemas existenciais, e prometem em alguns dias devolver uma nova pessoa para a comunidade. Isso é realmente tremendo (ludíbrio)! Engraçado como ninguém pensou em criar encontros ensinando como ser simplesmente servo (talvez por falta de público interessado).
Sempre haverá uma incompletude e certa insatisfação na vida do cristão. Nenhum culto, nenhum encontro da comunidade de fé, nenhuma pregação ou apresentação musical pode trazer satisfação completa. Se a saciedade fosse total não haveria o desejo de buscar mais. O salmista, mesmo conhecendo Deus, mesmo partilhando de Sua intimidade, ainda assim revela sua incessante busca: “a minha alma tem sede de Deus”. Ou seja, bebemos, mas queremos beber mais (não confundir com “anedonia”, que é um distúrbio da alma, uma incapacidade de sentir prazer ou satisfação).
Se todos vivessem satisfeitos e plenos ninguém produziria nada, bastaria se apropriar do que já é dado. O músico, o pintor, o escritor e o poeta realizam sua obra, não porque têm respostas, mas porque têm muitos questionamentos. É o mal-estar diante do mundo que nos leva a compor, a pintar e escrever, como estou fazendo agora. Os conformados, os bem-ajustados, os ricos, os medrosos.... estes nada querem mudar ou fazer – estão tristemente contentes em suas mediocridades e convicções. Mas é justamente a consciência que somos imperfeitos que nos impulsiona a realizar algo melhor.
Até a tristeza tem o seu lugar na vida: a bíblia ensina que há tristeza para a vida e há tristeza para a morte (2Co 7.10). Se forem lágrimas originadas do coração de Deus, essa dor será bem-vinda pois levará a alma a bom termo.
Paradoxalmente, tudo que é belo é triste, seja um pôr do sol ao entardecer, que é uma metáfora da vida que se esvanece, seja a beleza de uma música ou de uma flor, por não podermos perpetuar aquele momento. Fica então compreensível para nós quando Paulo diz que tem o desejo de partir e estar com Cristo que é “incomparavelmente melhor” (Fp 1.23). E por quê? Ora, ele mesmo responde que enquanto no corpo, estamos “ausentes do Senhor” (2Co 5.6), porque, agora, vemos como em espelho, obscuramente.... agora, conhecemos em parte.... (1Co 13.12).
É preferível a humanidade hesitante dos que tem dúvidas aos que esbanjam convicções. Eu não teria paciência em conversar um minuto com o irmão mais velho do filho pródigo, mas me deliciaria em passar horas trocando idéias com aquele jovem cheio de vida.
Também não quero ficar perto de quem se diz sempre contente – duvido que entenderia uma dor.
Não quero papo com evangélicos que fazem da fé um escambo com o Eterno: dá-se uma “notinha” pra Deus e Ele, em troca, atende o seu desejo.
Não quero orar por gente descontente porque ainda não possui o novo Ipod de 160Gigas.
Não quero marchar com multidões que depositam uma fé cega em homens e fazem qualquer sacrifício para ver seus ídolos de perto. Aliás, não quero nem marchar, mas andar pelo caminho olhando as aves do céu e os lírios do campo.
Felizmente encontro no apóstolo Paulo um ombro de lucidez espiritual: Se tenho de gloriar-me, gloriar-me-ei no que diz respeito à minha fraqueza (2Co 11.30). Sou incompleto, finito, limitado... mas, não trocaria de lugar com ninguém.
Pr. Daniel Rocha
dadaro@uol.com.br