sábado, 26 de dezembro de 2009

SÓ POR HOJE


“Não há um justo; nem um sequer”


Não há nada mais nefasto na vida do cristão que a presunção. Presunção de justiça própria, presunção de bondade, presunção de virtuosidade. É o orgulho espiritual em sua forma bruta. Em contrapartida, quem freqüenta os Alcoólicos Anônimos (AA) – que não são igreja – possui uma consciência muito clara de seu estado e de sua doença. No “Programa dos 12 Passos”, criado por eles em 1935, há várias confissões, entre elas: “Admitimos perante Deus, perante nós mesmos e perante outro ser humano, a natureza exata de nossas falhas”. Como afirmou Blaise Pascal: “A grandeza do homem é saber-se miserável”.

Cada um que chega às reuniões com o seu vício é recebido com sorriso largo e gestos de apoio. Fiquei pensando que nenhuma igreja saudaria com alegria alguém que se confessasse alcoólico ou dependente de drogas. Nos AA o participante admite a responsabilidade total e completa por todo o seu comportamento. Nas igrejas a culpa quase sempre acaba caindo nas malvadezas do Diabo. Lá ninguém diz que “era” alcoólico cada vez que se apresentam, pois percebem que diariamente lutam contra o mal que continua “existindo” dentro de si. Seria muito bom que cada cristão também reconhecesse sempre que “é” pecador.

Não há espaço para a opulência ou superioridade. “Se tenho de me gloriar, me gloriarei nas minhas fraquezas”, diz humildemente Paulo.

A vida do cristão se dá dia após dia. Se ontem falei e agi em santidade, não há garantias de perpetuidade desses gestos agradáveis a Deus amanhã. Se eu der ocasião à carne, por achar que preguei um piedoso sermão, a vaidade me dominará. O mesmo Pedro que acabara de confessar “tu és o Cristo”, logo em seguida ouve de Jesus um “arreda-te Satanás”, quando ele tenta impedir o Mestre de caminhar para a cruz.

Ninguém cai de uma vez, mas cai-se aos poucos. O salmista confessa que faltou pouco para escorregarem os seus pés (Sl 73.2). É preciso vigiar, é preciso descobrir as artimanhas e artifícios que o nosso inconsciente se utiliza para parecermos bons a nós mesmos.

Lidar com os pecados mais visíveis e grosseiros sempre foi a primeira grande preocupação do neoconvertido. Em pouco tempo ele se mostrará todo gabola porque já não bebe mais, não furta, ou adultera, enquanto vai sendo derrotado diariamente pelas “pequenas raposinhas”: má vontade, mau humor, intolerância, olhos maus, pensamentos mórbidos, descontrole verbal, inimizades..... Antes “furtasse”, ao menos isso o envergonharia e tomaria consciência de seu estado (“Sê pecador e peca fortemente, mas crê muito mais fortemente na Graça de Cristo”, escreveu Lutero a Melanchton). Entretanto esses problemas sutis passam imperceptíveis aos seus próprios olhos, pois quem convive diariamente com uma “leve” febre acaba achando-a normal, sem necessidade de tratamento.

Mas por que muito cristão sincero não percebe essas mazelas? Há um mecanismo de defesa em ação que tenta “eliminar” o impulso mal dos domínios da consciência através da repressão, mas ele continua a agir e a exercer profunda influência sobre a pessoa, apesar dela não se aperceber. Resumindo: sempre há uma distorção no olhar que lançamos sobre nós mesmos, e requer coragem olhar-se no espelho da Palavra e ser sensível ao Espírito Santo que habita em nós.

Não tenho dúvidas que estes precisam tanto de Deus quanto os AA, os NA (Narcóticos Anônimos) e os N/A (Neuróticos Anônimos). Ambos carecem da misericórdia divina: a diferença é que um reconhece e outro não. Um luta diariamente com sua fraqueza, seu pecado, suas tendências, permanecem atentos a cada impulso do inconsciente e a cada desejo que aparece de forma subreptícia (dissimulada). Outro se enxerga acima do mal.

Seguir Jesus implica em passar pelo crivo do Espírito as pulsões, vontades e desejos. Precisamos de cura, e isso não é fácil, ela vem devagar, com consciência, com vontade, e com ajuda do Eterno. Não creio em atos heróicos de supressão da carne, mas num processo que pede minha atenção dia após dia. Por isso:

Só por hoje quero fazer um silêncio interior, e ouvir a voz de Deus sussurrando em meu coração. Tentarei não murmurar das circunstâncias difíceis.

Só por hoje quero aprender a viver a minha vida presente, não ser dirigido pelo passado, nem ser tomado de ansiedade pelo futuro.

Só por hoje mostrarei simpatia por alguém que me tira do sério, terei mais paciência nas adversidades, e falarei devagar e com mansidão.

Só por hoje não exigirei das pessoas que as coisas sejam exatamente da maneira que eu quero: respeitarei a forma que os outros vêem.

Só por hoje não quero ficar me remoendo com os erros cometidos. Quero viver pela Graça e saber que em Cristo sou amado, liberto e perdoado.

Somente por hoje não farei drama de meus problemas, e orarei por um amigo distante.

E amanhã? Bem, se hoje eu conseguir viver de forma agradável a Deus, já serei mais feliz. Quando amanhã chegar será outra vez mais um hoje.... então vou começar tudo novamente.


Pr. Daniel Rocha
dadaro@uol.com.br