Soube recentemente de um psicólogo que “virou” gari durante oito anos e varreu as ruas da maior universidade do país para concluir sua tese de mestrado sobre “invisibilidade pública”. Em suas observações constatou que a maioria dos trabalhadores braçais são “seres invisíveis”, ou seja, a percepção humana do outro não os alcança.
Sua existência foi ignorada pelos seus amigos e professores, que esbarravam por ele, sem se desculpar, como se tivessem esbarrado num poste, pois não o “viam”. Uma vez precisou entrar no prédio onde estudava, com uniforme de gari, passou na frente de todos seus conhecidos, mas ninguém o enxergou. Ficou atordoado pela sua “não existência”, e chorava quando voltava para o seu mundo real. Descobriu que um simples “bom dia”, que nunca recebeu como gari, pode representar uma lufada de vida e de esperança na vida de uma pessoa.
Confesso que a experiência desse homem tocou em minha alma, pois me levou a enxergar minhas doenças sociais. Também sou igual aos seus professores e amigos, que têm um olhar seletivo. Mas com um agravante: sou um homem de fé (que seguramente tem muito a aprender).
Ser ignorado talvez seja a pior sensação que existe para um ser humano. Não é o ódio o contrário do amor, mas a indiferença. Nossos olhos estão acostumados a enxergar o belo, a valorizar o esteticamente apresentável, a granjear amigos que apresentam qualidades morais adequadas, que sejam limpos, decentes, bem casados, pessoas bem resolvidas, que professem nossa fé e nos façam bem.... afinal, não queremos manchar nossa reputação.
Duvido que reconheceríamos Jesus como Enviado de Deus, se o víssemos andando pelas estradas poeirentas da Judéia, pedindo um copo d’água à beira de um poço. Afinal, Isaías diz que ele “não tinha aparência nem formosura; olhamo-lo mas nenhuma beleza havia que nos agradasse, era desprezado e o mais rejeitado entre os homens” (Is 53.2-4).
Duvido que mesmo professando uma fé solidária daríamos atenção a um bando de leprosos clamando misericórdia, a uma samaritana de reputação duvidosa, a uma estrangeira com uma filhinha endemoninhada, a uma adúltera pega em flagrante, ou a um cego pedindo esmola à beira da estrada.... Não, nossos olhos se recusam enxergar essas coisas: preferimos ver pessoas que têm vitórias para contar, pregadores que chegam em carros reluzentes testemunhando o como eles não tinham nada e como agora são abençoados. Associamos a presença de Jesus com ternos bem cortados, glamour, jóias e penduricalhos.
Aprendo nos evangelhos que o Reino dos Céus é semelhante a uma grande ceia onde são chamados “os pobres, os aleijados, os cegos e os coxos” (Lc 14.21). Não haverá “bacanas” no céu, e sim pessoas que foram “invisíveis” aos nossos olhos.
Como igreja não temos aprendido a olhar essas pessoas. Certo domingo após um eloqüente sermão, um homem muito simples, e de aparência pouco atraente, que vez ou outra aparece, pediu-me que estivesse orando por ele durante a semana, pois estava muito mal de saúde. Disse-lhe que ficasse tranqüilo, que o faria. Mas esqueci completamente, pois sua débil figura não me veio a mente nenhuma vez. No domingo seguinte lá estava o pobre homem na fila para apertar a minha mão, e com um sorriso no rosto me perguntou: - “Pastor, o senhor orou por mim, não foi? Deus ouviu sua oração, pois estou me sentindo bem melhor”. Engoli seco com um nó na garganta, e o abracei em silêncio.
O moço da pesquisa mudou depois de passar por aquela traumática experiência existencial: deixou de lado suas doenças burguesas, tornou-se amigo daquela gente pobre da periferia, passou a freqüentar suas casas e nunca mais deixou de cumprimentar um trabalhador.
Nós temos muito mais razões ainda de mudar: um dia conhecemos Aquele Homem de dores, nossos olhos foram abertos por Ele, e mostrou nossa real condição: somos todos miseráveis que precisam da Graça divina. Já não há mais lugar em nosso meio para o orgulho, distinção, fé presunçosa e caprichos infantis, pois são doenças de quem ainda não compreendeu o que é o Evangelho.
O reconhecimento da presença de um Jesus sofredor e pouco aceitável dentro de nós haverá de nos levar a enxergar as pessoas invisíveis que Ele tanto amou. A partir de hoje aprenda a cumprimentar e respeitar as donas Marias que fazem o cafezinho de seu escritório, os Sebastiões que abrem o portão do seu prédio e os Beneditos que varrem o chão.... todos esses outrora homens e mulheres invisíveis, mas que agora fazem parte de sua vida, porque Deus os colocou ali para ver se você os enxerga ou não.
Faço ao Pai minha oração: “Abre os meus olhos, Senhor, para enxergar quem eu não tenho percebido, nem amado ou me preocupado. Que eu reconheça e valorize aqueles irmãos de fé que não apresentam beleza ou distinção alguma. Quero ter olhos bons para os solitários, tímidos e desajeitados. Que eu não discrimine ninguém pelo que é, pensa ou age. Amém”.
Pr. Daniel Rocha
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