quarta-feira, 3 de junho de 2009

Teologia para apontamentos atuais: indicando os vazios, edificando o Reino


Esse texto que eu redigi foi o texto que ficou em terceiro lugar em um concurso teológico na Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo (ano de 2009). O tema que orientou o concurso foi "o que significa estudar teologia Hoje".

Só recentemente, observando o relato da ressurreição de Lázaro, registrada no evangelho de João, capítulo 11, pude perceber enquanto possibilidade hermenêutica, que o verdadeiro milagre enfatizado pelo texto bíblico não é a ressurreição daquele que estava morto, mas os espaços vazios que foram preenchidos a partir da presença de Jesus. Marta e Maria sofriam duas ausências fundamentais: a ausência do parente mais próximo [Lázaro], e a do melhor amigo que uma família pode ter [Jesus]. Embora a casa das enlutadas estivesse cheia, somente a presença, aparentemente tardia, do amigo preenche as lacunas e transforma a realidade das irmãs restituindo-lhes o sentido de vida. Na seqüência do texto vou retomar essa passagem bíblica, e você leitor/a vai entender o porquê desse registro inicial.
Ao longo de quatro anos de estudos teológicos, eu colecionei alguns livros. Podemos colecionar coisas por motivos diversos, no entanto, uso o termo “colecionar”, no sentido mais prazeroso da ação, porque realmente eu me envolvi de forma profunda com a teologia, e em suas diferentes áreas do saber. Hoje me vejo sentado olhando minha ainda tímida biblioteca percorrendo com os olhos a estante estática de livros, extasiado, por tão criterioso e compenetrado. Após passar os olhos no último livro me apercebi parado no vazio de uma parede branca. Como num fantástico passe de mágicas a minha mente divagou. E a pergunta que um dia foi gestada e que agora desenclausurou-se das minhas entranhas foi a seguinte: e agora? Após tantas reflexões pastorais-teológicas, algumas delas conflituosas porque abalaram de forma positiva os antigos paradigmas; e considerando que, na condição de pastores teólogos, temos a incumbência de edificar para a vida; o que é que fica?
Após reflexão cheguei a uma conclusão, talvez um pouco coerente, embora certamente transitória como todas as demais definições humanas. Aliás, precisamos apreender: ainda que pretendamos ter achado respostas definitivas, não devemos nos distrair da máxima de que muitas de nossas “objetivações vitais” são transitórias. Depois da estante repleta de livros, aqui representando a reflexão acadêmica mais sistemática, percebo que existe um hiato a ser preenchido; existem ainda caminhos a serem percorridos. E essa percepção é saudável. O vazio daquela parede branca que parecia me engolir, que metaforicamente aponta para o final do período de uma caminhada teológica que está só começando, me fez refletir sobre esses “outros caminhos”. O algo a mais que ainda resta, em ausência. É isso o que pretendo com esse texto. Deixar pistas sobre o que significa estudar teologia hoje e como isso pode afetar de forma sensível e positiva a prática pastoral em tempos de “modernidade tardia”.
Pois bem. Estudar teologia hoje significa um convite à nos achegarmos aos extremos do perímetro da fé, ao conhecimento e reconhecimento dos vazios existentes. Eu diria que teologia é aprofundamento dos vazios enquanto ausência. Isso significa que o teólogo deve fomentar na sociedade o ato de reconhecimento que, independente dos modelos empíricos ou os do senso comum para apreensão do que é real e verdadeiro, deve sempre existir a pergunta pelo que fica, e conseqüentemente pelo que ainda é ausência. Somente com essa perspectiva do todo inacabado, porque sempre haveremos de percorrer ainda outros caminhos, e vamos nos deparar ainda com outras lacunas, poderemos manter viva a tensão escatológica entre o já e o ainda não. Conceitos teológicos, conceitos que falam de vida a partir da vida, para a vida.
Como não podemos pensar a ação teológica fora do âmbito da vida, precisamos considerar os sinais dos tempos atuais. E haveremos de concordar que: De forma quase sobrenatural impera em nossa sociedade, junto com os avanços tecnológicos e “des-avanços” sociais, uma mentalidade religioso-igrejeira [não pejorativo]. É a mentalidade de que “tudo está consumado”, tudo está completo. A partir dessa pseudo-verdade, adotada por muitos como estilo de vida, surgem outros modelos ideológicos, por exemplo, a idéia de que tudo é assim mesmo - nada vai mudar nunca por mais que façamos alguma coisa útil. Caímos num grande ciclo vicioso de “normismo” dos “normais”. Normatizamos como verdade eterna e imutável nossas percepções sobre verdade, e verdade é o “normalmente difundido” hegemônico, é o que é “comum”. Socialmente, estamos dizendo que já alcançamos todos os pontos máximos, e isso passa ser a norma: na Igreja, no âmbito da busca por Deus, o transcendente – “caçamos até pegar” [“os caçadores de Deus”]; descobrimos o caminho para alcançá-lo. Na academia, em termos de conceituações, e métodos, já descobrimos como sugar “o todo” das verdades testáveis. No campo da ética, nos pretendemos doutores quando nos outorgamos o direito de defender a vida. E a lista é interminável. É típica desse espírito moderno a soberba do “ser a cabeça e não a calda”.
Nesse sentido, a teologia precisa ser a facilitadora do processo pelo qual nossos olhos são abertos. Estudar teologia hoje deve significar o incessante aprofundamento dos espaços vazios ainda existentes, a quantificação deles se isso for possível, e a conscientização de que sempre hão de existir ausências. A teologia precisa como recurso metodológico levantar perguntas essenciais sobre o mais complexo da vida e sobre a atitude de viver comunitariamente, perguntas que apontem para a possibilidade da ausência. Dessa forma, contrapondo-se à sensação da soberania atual do se ter tudo sob controle, a teologia deveria nos conduzir a um momento especial de reflexão, onde nos apercebamos servos e mordomos no processo de edificação do Reino de Deus na terra entre a criação. Um Reino que em parte já está manifesto, mas que ainda precisa ser buscado em sua totalidade, que em suma, só se manifestará completamente quanto mais precisarmos o tamanho dos nossos tantos vazios, ao invés de focarmos na felicidade de apreciar e absolutizar aquilo que já foi manifesto.
Nesses termos, é possível o surgimento da crise saudável do/a pastor/a com relação ao ministério pastoral. Um dilema concreto. Isso considerando que, se queremos dar continuidade ao inútil processo da divinização dos conceitos e estruturas humanas, daquilo já manifesto, e pensamos em quantitativamente enchermos nossas Igrejas, basta prorrogarmos as modas, a tendência dos absolutos. No entanto, se buscamos a teologia dos vazios que se completam, vamos nadar contra as correntezas desse rio lamacento de uma fé virtual, e quase sempre vamos nos ferir. Aqui eu retomo o texto do evangelista João, citado no início desse texto. Somente mediante a fé no Jesus presente, palpável quando Marta e Maria experienciavam um profundo encontro com suas ausências, pôde-se restaurar o todo perdido. Ou seja, a paz tão ansiada do estar completo depende de nossas interações com o vazio em sua forma mais plural, mas é também proporcional à nossa fé em Jesus: Aquele que pode preencher todos os vazios e o fará na medida da manifestação de seu Reino entre nós mediante processo humano de constantes edificações.
A teologia deve então não só apontar os vazios possíveis presentes nos variados âmbitos da vida, mas também indicar aquele que é o fator preenchedor desses vazios: a fé em Jesus. Isso distingue a teologia das demais ciências, que embora correlatas, não têm o interesse de apontar e aprofundar a necessidade da fé também como fator humano e humanizador.

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