“Assim diz o Senhor: põe em ordem a tua casa, porque morrerás e não viverás” (Is 38.1b)
Aos nossos olhos a vida nem sempre é como “deveria”. Há sempre algo que se interpõe, que interrompe, que nos desvia dos planos traçados. O adoecimento repentino, um aneurisma, um nódulo no seio, os resultados do exame, o acidente na estrada, o esfacelamento do casamento.... Na vida não há caminho “seguro” – ao menos não da forma que gostaríamos.
Trata-se de um assunto difícil de tocar, pois preferimos imaginar que não somos frágeis, nem mortais. É uma autoilusão que pretende esconder nossa real condição de fragilidade. De onde vem essa distorção? Creio que falta-nos aquele contato com certas realidades “desagradáveis” da vida que nos ensinariam muito sobre nossa finitude, a dor, a morte.... Desde pequenos somos “poupados”: não precisamos mais caçar os animais para nossa sobrevivência, nem ouvir o grunhido aterrador do porco, ou destroncar o pescoço da galinha como nossos avós faziam – o frango e o leitão já aparecem limpos em nossa mesa. Também somos poupados da “desagradável” presença de doentes na casa, e raramente um enfermo termina os seus dias em seu quarto junto aos familiares. Sim, somos poupados dessas “mazelas”, e fica no lugar um buraco na alma e uma visão parcial da vida.
De igual modo preferimos fechar os olhos para o fato de que a morte não vem buscar seus escolhidos por ordem cronológica, principiando pelos velhos e doentes. Lembro-me que, ainda seminarista, fui levado por um irmão forte e saudável numa visita a um moribundo em seu leito que, segundo ele, estava “nas últimas”. Levei a ceia, orei e me despedi daquele ancião. Alguns dias depois recebi um telefonema, que o “irmão forte” que fora comigo teve um infarto fulminante (apenas para constar: o velho doente ainda viveu por mais dois anos).
Planos. Quais são seus planos? O rei Ezequias certamente tinha os seus, afinal era um rei gozando a vida no palácio, com servos prontos a obedecer suas ordens, mas de repente, uma indisposição começa a deixá-lo preocupado, e em alguns meses evolui para uma dor lancinante. Já não come, já não dorme, começa a definhar....
Geralmente as doenças se iniciam com um mal estar, e o corpo começa a enviar sinais de que alguma coisa não está bem. Creio que o Espírito Santo também nos aponta para o que não está bem em nossa vida: os relacionamentos se tornam doentios, a neurose se instala, o vazio, a apatia. Nessa fase são poucos que vão procurar ajuda, pois se tenta passar a idéia para o mundo – e para si mesmo – de que tudo continua bem.
De surpresa chega o profeta Isaías para visitar o rei. Quem sabe ele não teria uma “oração forte” ou uma palavra de ânimo? Afinal, é para isso que serve os enviados de Deus. Na verdade este é outro engano muito comum no círculo da fé – que Deus sempre tem coisas agradáveis a nos dizer. Fieis vão ao templo desejosos de ouvir palavras suaves e adoçadas com mel.... Mas às vezes Deus espera que saiamos “mal” da igreja. João Batista não usou de meias palavras ao chamar o povo de “raça de víboras”, e Jesus não se importou da multidão debandar por causa de seu duro discurso. Hoje, ao contrário, sempre se tem uma palavra de “cura e prosperidade” para todos, não importa o quão mal e distante de Deus estejam vivendo.
Diante de verdadeiros profetas enviados de Deus somos exortados, disciplinados, confrontados..... A Palavra conforta, mas também confronta. Talvez seja por isso que muitos não queiram mais freqüentar uma igreja e ser confrontados.
Para Ezequias, as notícias não são boas e também não tem oração para ele: “Ezequias, assim diz o Senhor: põe em ordem a tua casa, porque morrerás, e não viverás” (Is 38.1)
“Arruma as tuas coisas” porque há urgência. “Arruma as tuas coisas”, porque somos seres disfuncionais que precisam constantemente de ajustes.
Não temos facilidade de colocar em ordem o que não está bem em nós. Preferimos deixar as coisas como estão porque imaginamos que temos todo o tempo do mundo. Se Deus deixar por nossa conta, jamais veremos premência em pedir perdão a quem ofendemos, não vemos urgência em acertar relacionamentos destruídos, não sentimos a necessidade de dizer o quanto aquela pessoa é importante para nós... Pensamos: “tem tempo pra isso, tem tempo”.
Chocado com a notícia, Ezequias entra nos seus aposentos, se vira para a parede, clama a Deus e chora muitíssimo. Deus chama novamente o profeta, mas agora para dizer que ouvira a oração do rei e vira as suas lágrimas e estava acrescentando “aos seus dias quinze anos” (Is 38.5).
Talvez num passado distante ou recente havia sobre você uma “enfermidade que era para a morte”, mas o Deus misericordioso viu suas lágrimas e ouviu sua oração. Quem sabe você não esteja justamente vivendo esse período de “quinze anos” sobre a Terra. A pergunta é: para que Deus fez isso?
No futebol há jogos que terminam no tempo regulamentar em 0 X 0. Às vezes nesse período de jogo não houve graça, alegria nem comemoração. Mas o árbitro pode dar uma prorrogação, e naqueles minutos a mais muitas coisas podem acontecer que valeu a pena ter estado ali.
Não sei meu irmão se você está na “prorrogação” que Deus lhe deu pra ver se acontece “alguma coisa”. Muita coisa pode ser realizada, revista, alterada.... afinal, passar pela vida sem paixão, acordar a cada dia indiferente a tudo, é desperdiçar a vida e a graça divina.
O que fazer com o tempo que nos resta? A poetisa Cora Coralina, que publicou seu primeiro livro na “prorrogação” aos 76 anos, em sua simplicidade e sabedoria, nos ensina....
Não sei se a vida é curta
Ou longa demais pra nós,
Mas sei que nada do que vivemos
Tem sentido, se não tocamos o coração das pessoas.
Muitas vezes basta ser:
Colo que acolhe,
Braço que envolve,
Palavra que conforta,
Silêncio que respeita,
Alegria que contagia,
Lágrima que corre,
Olhar que acaricia,
Desejo que sacia,
Amor que promove.
E isso não é coisa de outro mundo,
É o que dá sentido à vida.
É o que faz com que ela
Não seja nem curta,
Nem longa demais,
Mas que seja intensa,
Verdadeira, pura… Enquanto durar
Realmente, este é o espírito do Evangelho: o que conta não é a quantidade de anos que se vive, se é muito ou pouco, desde que a sua vida seja intensa, pura e verdadeira. Então, arruma as tuas coisas.
Pr. Daniel Rocha
dadaro@uol.com.br
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